sábado, 2 de maio de 2009

CULTURA DE VALOR NAS EMPRESAS

Por Luisa Monteiro

Em um brainstorming pouco usual dentro das fronteiras empresariais, publicado na revista HSM Management, o professor da FGV-EAESP e da FIA-USP provoca os gestores para que analisem a cultura de suas empresas em face das crises climática, financeira e de humanidade: que barbáries as organizações vêm cometendo? A linguagem alinhada realmente favorece a civilização? Qual é o real valor de um resultado obtido a qualquer custo?

O imperativo da cultura organizacional sadia é
Desenvolver sensibilidade e consciência que permitam
enxergar as conseqüências de longo prazo da ação do homem
sobre a natureza, como afirma Jean Bartoli, professor da fia
e da fgv-eaesp, em um artigo provocador.


Falar de cultura empresarial é um desafio depois de tudo o que foi escrito sobre esse assunto. Contudo, o que me empurra para escrever é que as empresas hoje, como todas as instituições que adquirem certa hegemonia na sociedade de seu tempo, correm o risco de considerar o mundo o palco de suas realizações sem avaliar com suficiente sabedoria sua subordinação ao mundo nem as consequências sobre este das ações por elas conduzidas. Por isso, quero colocar esse tema em perspectiva.
Uma reflexão sobre cultura de valor nas empresas deve desenrolar-se simultaneamente em três planos: o do mundo, o da empresa e o da pessoa que interage com a empresa como cliente, como executivo, como fornecedor ou como acionista e, ao mesmo tempo, como cidadão do mundo. Gostaria também de consultar a etimologia das palavras cultura e valor para reencontrar sua vida e seu vigor, lembrando a advertência do filósofo francês Alain: “Não devemos nos contentar com idéias que, mesmo verdadeiras, tornam-se falsas no momento em que nos contentamos com elas”.
Mais do que uma exposição, este texto será uma ruminação, metáfora usada para o exercício da meditação em muitas tradições espirituais, para que, por meio do sabor das palavras, possamos encontrar um pouco de saber e de sabedoria. Pretendo também deixar algumas perguntas e algumas trilhas para que cada um possa continuar o exercício de reflexão e transformar as próprias descobertas em atitudes concretas.
Cultura
Os substantivos originam-se, frequentemente, de um verbo de ação. É o caso da palavra cultura, vindo do verbo latim colere que tem vários significados articulados ao redor das palavras cuidar, habitar e cultivar.
Segundo Jean-François Mattéi, em seu livro A Barbárie Interior, Cícero usa a expressão excolere ânimos doctrina (cultivar os espíritos pela instrução). O homem culto sabe cuidar da própria alma, como o camponês cuida do próprio campo, para poder habitar o mundo como um ser humano e não como um animal.
A cultura está articulada com a natureza, o espírito com a terra e o homem com o mundo num trabalho íntimo no qual a alma abre em si mesma o próprio sulco até colher os frutos. A partir do século 18, o Século das Luzes, a palavra cultura designa também tanto o saber dominado num sistema como o trabalho de educação do espírito que elabora esse sistema na emergência da civilização.
É essa cultura herdada dos princípios humanistas da Antiguidade que a Europa tentará impor ao mundo inteiro. Vem depois a “cultura de massa”. Escrevia Edgar Allan Poe, no conto “O homem na multidão”: “Minhas observações tomaram primeiro um jeito abstrato e generalizado. Olhava para os transeuntes por massas, e meu pensamento os considerava tão-somente em seus laços coletivos”.
O olhar sobre o homem das multidões é abstrato e genérico, porque esse homem, que vai dominar a cena social, é um homem de massas que só pode ser considerado em suas interfaces coletivas. É o olhar “processador” que transforma as pessoas reais, consideradas em suas relações coletivas, em sujeitos abstratos impossíveis de ser distinguidos uns dos outros. A massificação do olhar produz a massificação dos comportamentos e a massificação do pensamento.
Duas perguntas:
01. Será que, nas empresas, não vivemos um processo de massificação semelhante quando transformamos as pessoas em perfis disso ou daquilo?
02. Queremos que a cultura de nossas empresas privilegie a busca de um conhecimento real, de um exercício honesto e humilde de nossa capacidade de pensar ou que ela seja um instrumento de manipulação que transforme as pessoas em sujeitos abstratos, planilhados e intercambiáveis que só possam produzir discursos e comportamentos massificados?
Barbárie
Quando falamos de cultura, existe um tema que não podemos deixar de mencionar, porque, infelizmente, ele se convida em todas as tentativas civilizatórias e culturais que o humano tenta construir. Desde a Grécia e Roma, a humanidade civilizada pensou-se como humanismo somente elevando o homem acima da própria barbárie, pela conversão de sua violência surda numa obra de criação, ou, como diz Goethe, numa obra de excelência.
A palavra barbarophonos aparece na Ilíada, de Homero, e designa a pessoa que hesita,articula mal e, portanto, massacra o próprio idioma antes de massacrar os outros idiomas e as outras culturas. A primeira linha de fratura entre a barbárie e a civilização passa no meio dos que conseguem dominar o discurso e dos que não conseguem. Aquele que domina a palavra e as forças caóticas presentes na linguagem humana é civilizado na guerra ou na paz.
Aquele que fala de modo confuso e desarticulado, deixando-se envolver pela própria violência interior, é bárbaro na guerra e na paz.

A linguagem aparentemente alinhada não esconde uma confusão mental?
há consciência da barbárie presente nas empresas?

Na filosofia grega, Heráclito já dizia que quem confiava nos sentidos em vez de confiar na própria razão devia ser considerado “alma bárbara”. Ele chama de escravos os que estão fechados na idiotia (seu mundo particular), permanecendo cegos e surdos para a razão comum. A barbárie sempre latente no homem afastado do logos, esse senso comum que pertence a todos, não sendo propriedade de ninguém, é nomeada por Heráclito de hubris, que significa excesso desmedido.
A barbárie deve ser combatida pelo pensar, que significa descobrir a verdadeira medida e os limites que permitam sair da própria idiotia (podem traduzir por idiotice...) e inscrever-se no mundo comum dos que têm a humildade de pensar, de discernir para poder agir.
Os “idiotas” contemporâneos não são muito diferentes! O bárbaro não é mais estrangeiro para o humano do que a barbárie o é para a civilização ou a morte para a vida. A barbárie é constitutiva da humanidade, é interior a ela. Só o homem como humano, misto de razão e instinto, de paixão e de entendimento, pode e deve escolher entre deixar soltas as pulsões destruidoras do próprio ser e dominá-las numa obra de civilização. Senão, ele não merece mais o qualificativo de humano e torna-se desumano!
Então, há duas perguntas:
01. Sob uma linguagem aparentemente “alinhada”, não há hoje grande confusão mental, pensamentos desarticulados e falta de bom senso que impedem várias organizações de expressar claramente o projeto que elas dizem compartilhar com seus clientes, seus executivos e a sociedade?
02. Estamos conscientes da barbárie presente nas empresas, manifestada em barbáries cotidianas que ofendem a inteligência e, portanto, a dignidade de seus colaboradores, seus clientes, seus fornecedores e seus acionistas?
Valor
Essa palavra vem do verbo latim valere e significa ser forte, vigoroso e poderoso, ter uma superioridade, uma influência, um significado e um sentido. Em português, o verbo valer encontra significados parecidos e é usado em expressões presentes em nosso dia-a-dia. Resgatar essas expressões pode dar nova vida a um substantivo muito desgastado.
Valeu
Quando usamos a expressão “valeu”, aludimos a uma experiência forte, vigorosa e boa. Escrever “valores” na parede significa algo para uma comunidade empresarial, religiosa ou política somente se seus membros conseguirem identificar uma experiência forte e valiosa que encarne esse texto. No caso da comunidade empresarial, empenhada, por causa de sua própria natureza e finalidade, em alcançar resultados econômicos e financeiros, a questão fundamental é também qualitativa: para quem valeu esse resultado? Essa pergunta leva exatamente a refletir se o resultado alcançado valeu para um dos protagonistas da ação empresarial (por exemplo, o investidor) ou para todos eles (investidores, clientes, colaboradores, fornecedores e a comunidade política onde a empresa está inserida).
Valeu a pena?
Dependendo da resposta dada à pergunta acima, vem outra indagação: qual é o preço que estamos dispostos a pagar para fazer nossas escolhas valer e se transformar em experiências positivas? Uma das experiências humanas mais dolorosas é a escolha, principalmente entre dois bens que não são compatíveis, por exemplo, entre dinheiro e integridade numa situação de corrupção. A aceitação da pena ou da perda será referenciada ao escopo perseguido e à capacidade de enxergar mais longe do que os resultados ou o bem-estar imediatos. Consideremos a crise atual. Segundo Jacques Attali, ela fornece a oportunidade de entender como um pequeno grupo de pessoas, sem produzir riquezas, confiscou legalmente, sem controle de ninguém, parte essencial do valor produzido por todos e como esse grupo, tendo conseguido arrancar tudo o que podia, mandou a conta para os contribuintes, forçando os governos a achar em poucos dias o dinheiro sempre negado para os mais desfavorecidos e os esfomeados do mundo inteiro. A sociedade então pergunta com uma insistência cada vez mais ensurdecedora: para quem valeu a pena tudo isso? Acrescentaria duas expressões que ajudam na procura de um discernimento de valores para nossa sociedade e para nossas empresas.
Não vale
Quais são os limites em que uma experiência pessoal se torna possível em harmonia com uma experiência coletiva advinda das relações de interdependência que encontramos ou escolhemos como seres humanos, em nossos vários papéis de parentes, de amigos, de executivos e de cidadãos? Pode parecer até difícil identificar esse conflito numa sociedade que preferiu a liberdade individual a qualquer outro valor (justiça, solidariedade, imortalidade...) e proclamou que essa era a única escolha possível, preferindo o bem-estar até mesmo à felicidade. Essa apologia da liberdade individual acabou transformando a deslealdade e a cobiça em valores aceitáveis, assim destruindo os empregos, o direito e, por fim, o altruísmo, considerado coisa de ingênuos e de perdedores.
é para valer?
É para valer que podemos confiar num sistema que faz a apologia de sua própria precariedade? Segundo Jacques Attali, a ideologia que serve de base para o poder de um grupo deve também ter a capacidade de dar para as pessoas uma razão e um horizonte para trabalhar e para viver. A ideologia atual é chamada abusivamente de “neoliberal”, porque muito seletiva em relação aos princípios da grande tradição liberal advinda de Adam Smith, por exemplo, no que tange à relação capital-trabalho. Daí sua dificuldade em explicar o que há de liberal no fato de que o capitalismo atual só serve uma pequena minoria. Portanto, a democracia, que deveria equilibrá-lo, leva cada vez menos em conta os interesses dos mais necessitados e das próximas gerações. Democracia e mercado tornam-se valores cada vez mais ameaçados e isso pode desencadear um movimento de revolta e de violências políticas sem precedente, paralelamente à volta ao ódio de classes.
Trilhas
No momento em que falamos de cultura e de valores, é difícil ignorar que estamos falando de ética. Segundo pensadores contemporâneos, como Hans Jonas e Emmanuel Lévinas, uma reflexão ética só faz sentido quando se busca uma perspectiva de futuro.
A ética do futuro e o “princípio responsabilidade” (a expressão é de Hans Jonas) implicam maximizar o conhecimento de nosso agir na medida em que suas conseqüências podem determinar e pôr em perigo o destino do homem e da natureza. A necessidade de um conhecimento maior sobre as eventuais consequências ulteriores de nosso agir coletivo deve conjugar o rigor científico e a vivacidade de nossa imaginação; só assim o que discernimos do futuro exercitará sua força de influência sobre nossas atitudes de hoje, forçando-nos a “proagir”.
Isso gera um imperativo de educação: trata-se de desenvolver sensibilidade e consciência que permitam enxergar as conseqüências de longo prazo da ação do homem sobre o equilíbrio delicado entre as pretensões humanas e a capacidade de produção da natureza.

O fato é que a apologia da liberdade individual
tornou a deslealdade e a cobiça valores aceitáveis


Esses são os desafios de qualquer pessoa responsável que procure resgatar uma cultura organizacional sadia!

Referências bibliográficas
Attali, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século, 2008.
Bartoli, Jean. Ser executivo, um ideal? Uma religião?. São Paulo: Ideias & Letras, 2005.
Boff, Leonardo. Ética e moral, a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003.
De Gaulejac, Vincent. Gestão como doença social, ideologia, poder gerencialista e
fragmentação social. São Paulo: Ideias e Letras, 2007.
Jonas, Hans. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
Mattéi, Jean-François. A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo:
Editora Unesp, 200.
Reich, Robert B. Supercapitalismo: como o capitalismo tem transformado os negócios,
a democracia e o cotidiano. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2008.
Soros, George. O novo paradigma para os mercados financeiros. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

Saiba mais sobre Jean Bartoli
Francês que adotou o Brasil como pátria desde 1975, Jean Bartoli é professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV -EAESP ) e da Fundação Instituto de Administração da Universidade de São Paulo (FIA -USP ), além de professor convidado da Fundação Dom Cabral. Tem em seu currículo a experiência de palestrante e consultor de várias empresas de primeira linha no Brasil, com ABN -AMR O Bank, Accor, Aracruz, Aventis, Banco do Brasil, HSBC , Itaú, Bic, Blindex, Bradesco, Braskem, Camargo Corrêa, Carrefour, Cargill, Dow Química, Ford, Grupo Bertin, Lojas Renner, Marcopolo, McDonald’s, Mercedes, Multibrás, Rhodia, Santander, Siemens, Telefônica, Unibanco, Ultragaz, Vivo, Volkswagen, Votorantim Celulose e Papel, Wal-Mart e White Martins, entre outras. Especialista em temas como ética, liderança e comportamento organizacional; autonomia e tomada de decisão; aspectos relacionais da gestão de pessoas; espiritualidade e vida empresarial; aprendizado; e sacrifício e sofrimento no trabalho, Bartoli tem uma experiência pessoal fora da curva: foi religioso dominicano até 1981. Também foi gerente nacional de recursos humanos do Makro Atacadista e responsável pela área de recrutamento e seleção de executivos da firma de consultoria Coopers & Lybrand, entre outros cargos. Em 2005, lançou Ser Executivo, um Ideal? Uma religião? (ed. Ideias & Letras).

Um comentário:

Gabriel Pontes disse...

Olá, não sabia em qual blogue comentar. Mas gostei muito desse, tem assuntos muito interessantes. Obrigado por se tornar uma seguidora do meu blogue. Prometo que sempre que possível estarei por aqui.

Um grade abraço.

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